Relação
afetiva entre donos e bichos cria linguagem particular
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Revista da Folha
22/04/2007 - 15h48
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Roberto de Oliveira
Maria do Carmo |
Daniely tem apenas um ano e quatro meses.
Fala perfeitamente "mamãe" e "papai",
mas bate a língua nos dentinhos quando grita o nome
da pastor alemão Cony, 2. Só sai "Có".
Poucas palavras não têm sido empecilho para que
criança e cachorra emitam, cada uma a sua maneira,
sinais claros de entendimento.
Um mês antes de completar um ano, Daniely pulou cedo
da cama. Sem dar um pio, a garotinha saiu do quarto, atravessou
a cozinha e o quintal, percurso aproximado de 15 m, e seguiu
em direção ao lago, de 1,5 m de profundidade,
nos fundos da residência -uma chácara em Cotia
(Grande SP)-, quando foi surpreendida por Cony.
Maria do Carmo/Folha Imagem
A pequena Daniely e Cony, que a salvou de cair em lago no
fundo de casa
Dentro da casa, a mãe, a auxiliar administrativa Tatiane
de Araújo, 23, nem se deu conta do movimento da menina.Encontrou
a filha sentadinha e chorando. A cachorra formava uma espécie
de barreira de proteção ao redor dela, a poucos
passos do lago. A garota não tinha um arranhão,
apenas sua saia exibia uns furinhos na parte de trás.
O mais surpreendente dessa relação é
que a cadela não pertence a nenhuma das duas. É
do vizinho. Freqüenta a casa de Tatiane desde filhote,
antes mesmo de Daniely nascer.
No oitavo mês de gravidez, Tatiane passava horas intermediando
uma espécie de diálogo, inventado por ela, entre
bebê e cachorra.
Na primeira vez que engatinhou, Daniely seguiu em direção
a "Có". Tatiane acredita que
Cony agiu motivada pelo instinto materno.
Para Mauro Lantzman, 46, professor de psicobiologia da PUC,
especialista em comportamento animal, por existir um vínculo
afetivo entre elas, a cadela agiu para proteger a criança.
Há situações, diz ele, como o fato de
a fêmea estar num período hormonal, em que pode
exibir um comportamento materno, direcionado a outra espécie
que o desencadeie.
Sinais
É fato que o homem sabe muito bem quando o cachorro
está triste, alegre, agressivo ou quer brincar. Mas
e o bicho? A ciência diz que cães são
capazes de ler as emoções de seus donos e responder
a eles, num fenômeno chamado de ressonância afetiva.
Segundo o psicólogo César Ades, 64, especialista
em comportamento animal da USP, esse fenômeno é
marcado por uma leitura de sinais, que são construídos
ao longo do relacionamento entre donos e bichos.
"É um entendimento tácito com símbolos
próprios, estabelecidos na interação
entre os dois. No relacionamento, ambos aprendem a decodificá-los",
diz. E isso também se aplica aos gatos, ainda que cães
sejam mais aptos a interpretar sinais.
Tidos como frios e distantes, os bichanos carregam o rótulo
de independentes. Mas isso não significa que histórias
de interação entre seres humanos e felídeos
não possam ser repletas de laços afetivos.
A secretária Arlete Heleno, 42, não tem dúvida
de que sua gata sem raça definida Ximena, 15, sente
quando ela chega em casa com dores. "Ninguém suportou
tanto sofrimento ao meu lado como ela", conta Arlete,
que encontrou a gata numa lata de lixo. A secretária
enfrentou um ano de cama depois de sofrer um acidente de moto
em maio de 1993. Teve 13 fraturas nas duas pernas e perda
de massa óssea. Por pouco não amputou a esquerda,
mas perdeu parte dos movimentos do pé.
Cinco dias de internação, e Arlete foi para
a casa da mãe. Estava irreconhecível, coberta
por curativos e cheirando a remédio. Ximena deitou
ao lado da dona. A gata passava a patinha em seu rosto, como
se enxugasse suas lágrimas. Nos quatro primeiros meses
pós-acidente, a secretária se submeteu a uma
bateria de radiografias. Ximena a esperava no portão
e acompanhava a dona até o quarto. Lá ficava.
A vida solitária e restrita a medicamentos, cama e
hospitais fez com que Arlete engordasse 40 kg e caísse
em depressão. Houve dias em que ela acordava chorando
e passava o tempo todo assim. Ximena não arredava as
patas.
Arlete já viu sua afeição pela gata
ser taxada de "maluquice", "balela" e
"estupidez". Durante um ano de convivência
intensa, a secretária passou a entender o que Ximena
quer dizer quando se esfrega entre suas pernas, dá
um miado em seu ouvido ou escorrega a patinha peluda no rosto
dela. Para esses gestos, prefere ignorar adjetivos.
O comerciante Marcos Eliseu Balles, 60, também tem
uma dívida, "impagável", com o seu
gato. "Devo a minha vida e a da minha mulher a ele."
Sábado frio de 1995, Marcos e a mulher, Stella, chegavam
em casa por volta da uma hora da manhã. Com uma enxaqueca
daquelas, acentuada por uma sinusite, o comerciante colocou
água no fogo para fazer inalação. Cansado
e sob efeito de um coquetel de analgésicos, caiu no
sono -Stella estava apagada.
Duas horas e meia mais tarde, Marcos ouviu um ruído
na porta do quarto. Ruivão, persa mestiço, hoje
com 14 anos, pela primeira vez tentava invadir território
proibido. Até então, o gato tinha sido criado
para permanecer longe dali.
Segundo a veterinária e terapeuta Rubia Burnier, especialista
em comportamento animal, com estudos no Brasil e no exterior,
o gato tem seus sentidos muito apurados e isso faz com que
ele tenha uma percepção aguçada de mudanças
ambientais. O cheiro despertou seu instinto de sobrevivência
e ele procurou uma rota de fuga.
Assim que abriu a porta, para sua surpresa, Ruivão
entrou no quarto e subiu na cama. Ficou olhando o dono e esticou
as unhas na manga de seu pijama. Marcos tentou enxotar o bichano,
virou para outro lado e pegou novamente no sono. Mas Ruivão
não desistiu. Vinte minutos depois, o gato acordou
o dono, batendo mais uma vez em seu ombro.
O comerciante se levantou no momento em que o gato pulou
no chão, como se quisesse mostrar o caminho. Saiu do
quarto e de cara sentiu um cheiro forte. A água havia
fervido, apagado o fogo, e a cozinha estava tomada pelo vazamento.
Fechou o gás e abriu janelas e portas, sem acender
a luz, o que poderia ter provocado uma explosão. Antes
do episódio, Marcos tinha predileção
por cães e certa resistência a gatos. Desde aquela
noite, Ruivão conquistou, além de respeito e
simpatia dos donos, um lugar cativo ao pé da cama do
casal.
Contato íntimo
O vínculo entre homens e pets passa por uma nova transformação,
acredita Mauro Lantzman. Cães e gatos estão
cada vez mais dentro de casa por conta da nova organização
urbana (proliferação de apartamentos, quintais
menores).
Com essa interação, eles acabaram estreitando
suas relações sociais e afetivas, muitas vezes
suprindo essa carência humana, numa sociedade individualista
e solitária.
Tanto do ponto de vista cultural como biológico, o
homem vem lapidando seu aprendizado com os bichos pelo contato
e também pela observação, analisa o professor
Mauro Lantzman. "E os pets adaptam seu repertório
comportamental à convivência com os seres humanos."
É difícil negar que o convívio entre
os donos e bichos traga ganhos tanto para a saúde como
para a mente. Um trauma, por exemplo, que pode causar um seqüestro
relâmpago, foi encurtado graças à ação
de (quem diria) uma poodle.
Vale registrar que qualquer cachorro, independentemente da
raça, tem instintos de defesa e proteção,
segundo Rubia, autora de uma pesquisa sobre agressividade
canina. A reação depende do tipo de relação
que o animal mantém com as pessoas e do seu vínculo
afetivo.
Véspera de Réveillon de 2003. A empresária
Licênia Fang, 59, seu marido, Waldo, 56, e a cachorra
Meg, 12, estavam a caminho da rodovia Imigrantes, rumo ao
litoral. Num semáforo, cinco assaltantes fizeram os
três de reféns. Dois deles acompanharam Waldo
até o caixa eletrônico, onde sacaram R$ 600,
enquanto os outros três aguardavam no carro.
"Só caiu a minha ficha quando o ladrão
me disse que se a cachorra não parasse, daria um tiro
nela. Fiquei desesperada", conta a empresária.
O assaltante retirou da bolsa de Licênia todos os cartões
de crédito e, quando viu que a empresária usava
um valioso relógio, tentou arrancá-lo. Foi a
deixa para Meg avançar sobre o braço dele. Naquele
momento, a empresária teve medo de uma reação
drástica dos bandidos.
Para sua surpresa, os assaltantes abandonaram o carro, se
juntaram aos outros e fugiram. Se não fosse por Meg,
vai saber o que teria acontecido?
A poodle sempre foi muito frágil, com problemas graves
de saúde. Tem desvio nos ossos das pernas, anda com
dificuldade e sofreu duas cirurgias de correção
nas patas traseiras. Tudo isso acompanhado ao vivo pela proprietária.
Como se vê, a fidelidade não é só
canina.
Fragilizada, Meg ainda arrumou forças para revelar
seu "espírito pit bull". Licênia agradece.
Esta reportagem foi publicada pela Revista da Folha em 11/03/2007.
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